sábado, 8 de novembro de 2014


As coisas “livres no olhar de cada um”

Wladimir Cazé [1]

Neste seu primeiro livro, Rodrigo Caldeira lança um olhar amoroso e lúcido à cidade, à mulher, ao indivíduo cindido dos dias de hoje e à tradição poética brasileira, acionando algumas das múltiplas lentes e filtros que um escritor tem à mão: a mirada social; o enlevo amoroso e o encontro erótico; a revisão-releitura de textos-chave da nossa modernidade; os reflexos (e reflexões) do eu partido; a contemplação meditativa sobre o tempo e a vida. São esses os principais temas que o poeta escolhe e se dedica a escrutinar em mais de 50 poemas de estilos e formatos variados, todos eles, no entanto, perpassados por uma única dicção.
 Na peça de abertura, “Identidade”, o poeta se apresenta e expõe suas referências, sem culpa, num tributo ao cânone modernista (Drummond, Pessoa, Adélia, Bandeira) que reconhece e incorpora (para superá-la) certa angústia da influência – tema caro ao autor, que em seu mestrado em letras pela Universidade Federal do Espírito Santo estudou a presença da poesia de Drummond nos primeiros escritos de João Cabral de Melo Neto. Essa reverência à tradição é um traço marcante de Inventário dos olhos e atravessa o volume do começo ao fim. Em compensação, já meio caminho andado livro adentro, o leitor se depara com um poema quase raivoso como “Raiz”, que alude a certa planta drummondiana para, com ousadia, afirmar a própria voz:

Enterrarei meu corpo sob esse chão cinza
e feito raiz quebrarei os paralepípedos:
uma estranha árvore na confusão do tráfego.

(...)

Ninguém passará sobre meu corpo impunemente.

“Raiz” também descortina o tema do excluído social, figura que se fará recorrente no conjunto de textos, sempre pelo viés da solidariedade indignada e de certa sensação de impotência, como no poema “Fingidor”:

(...)

(Há no sinal vermelho olhos de crianças
não verdesperanças – olhos pretos de fomes infantis
reletidas nos vidros que se fecham)
(...)

           O poeta fita o espaço urbano e percebe que nesse cenário não há lugar para a poesia: habita um “(...) jardim de pedras / onde um poema não resistirá ao peso das flores mortas”. Mas mesmo diante das adversidades, ele, gauche que é, ergue sua bandeira e escreve seu poema-construção – mostrando-se ciente, por outro lado, de que a realidade vista e vivida está sempre aquém e além de qualquer ideia ou emoção que o texto possa enunciar (como explicita o poema “Amar: verbo incurável”, no qual se lê: “tardo com palavras / o que os olhos já dizem ao léu”).
Em “Pontilhismo por uma paixão”, o poema assume a voz de um quadro (uma pintura) e desenha uma cena íntima, que tem lugar em algum momento da madrugada. Tristeza e desejo se confundem com os corpos dos amantes sob a luz difusa. Termo proveniente da história da arte, pontilhismo é o nome de uma técnica de pintura, surgida depois do apogeu do impressionismo, na qual pequenas formas e manchas coloridas são aplicadas na tela pelo artista, de modo que, ao se reunirem opticamente pelo olhar do observador, adquirem, à distância, os contornos de uma imagem única. Associando a noção de pontilhismo à poesia de Rodrigo Caldeira, talvez se possa arriscar uma leitura dos poemas de Inventário dos olhos como exemplos de uma possível poesia pontilhista. Como se, ao inventariar os objetos de um mundo descontínuo, informe, o poeta procurasse dar-lhe forma e sentido, representando o aparente caos com que é interpelado pela vida. O poema “D’eus” diz:

(...)

Respondi ao questionário da vida
com uma descontinuidade simples

(...)

Assim, Caldeira compõe, verso a verso, um catálogo de coisas com que os olhos se ocupam: noite vazia, sinal vermelho, beleza, dor, cinema, pichações, lixo, televisão, porta-retratos, corpo nu, pele, mão, perna, seio, sorriso enluarado, olhos. E cada leitor, com seu ponto de vista particular, se encarrega de reunir essas imagens em uma totalidade de sentido. É esse o jogo que o próprio poeta parece propor no poema “Coisas”, em que, à maneira de um demiurgo de si mesmo, depois de recensear suas ações, conclui, a respeito das coisas feitas: “fi-las para viverem livres no olhar de cada um”.
Mas tal liberdade (ainda que tarde) não impede que o poeta, em certos dias ou noites de angústia, sinta-se confinado ao cotidiano opaco e estéril, anestesiado pela rotina e pela falta de intensidade das coisas que vê e sente, como descreve o poema “Despropósito”:

(...)

a casa se chama apartamento
estou na parte a que chamam quarto
meu corpo jaz sobre o que se chama cama
meus olhos olham o teto

a casa se chama apartamento
estou na parte a que chamam banheiro
meus pés no frio do que se chama chão
meus olhos nos olhos do espelho

(...)

À medida que os poemas se sucedem, articulados num todo coeso, Inventário dos olhos ganha força expressiva e cresce em densidade, até o ponto culminante da escrita de Rodrigo Caldeira: o último texto do livro. Evocando tanto a “Quadrilha” de Drummond (1930) quanto o único poema em prosa de Cabral (“Os três mal-amados”, de 1943), “Raimundo (a fala de um mal’amado)” multiplica imagens surrealizantes para falar de saudade, solidão e amor, num caleidoscópio que mistura as cicatrizes da alma, as tatuagens do corpo e as pichações dos muros da cidade. De forma inventiva, o caráter lírico do poema é levemente torcido em suas duas frases finais, que tratam do destino dos personagens Maria e Raimundo. Aí, uma micronarrativa se introduz na trama de metáforas e metonímias, convidando a uma releitura do texto desde o início (agora sob a perspectiva de quase-conto poético).
Livro de uma poesia simples, sem malabarismos de linguagem, Inventário dos olhos tem o mérito de comunicar-se com o leitor não-especialista e de ativar os sentidos desatentos para os encantos da arte verbal. Sob esse aspecto, destacam-se poemas como “Amor corvo”, “Sombra”, “Corações disparados” e “Dois quartetos para o pensamento”, alguns dos melhores momentos do primeiro trabalho de um poeta que tem muito a crescer e a dizer.

[1]
Mestrando em letras na Universidade Federal do Espírito Santo e autor dos livros Microafetos (poesia, 2005) e Macromundo (poesia, 2010).

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