sábado, 29 de dezembro de 2012

"Andrógina, mestiça-city, dengosa, faceira no primeiro momento, pegajosa, porém puta e ladra. Bichona-city, desmunhecada. (...) Vou alinhavando esta trama pelos veios da Soterópolis pra ter algo parecido a sentido (...). Zarpo num coletivo que veloz atravessa a urbe-labirinto que é inferno mais ou menos controlado; cidade a inchar não convulsa de todo ainda, metal-flux a dar contorno ao cimento armado que cresce em suas encostas, baldios, supersubúrbios; cidade banhuda, que com esta paisagem fálica fica com ares de asséptica, higienizada. O tráfego em sua sístole-diátole termina o Corredor da Vitória, deslizo pela ladeira da Barra, inicia o Porto e a Orla se desfralda. (...) Curva na ponta do continente, no Farol, seguindo pela beira, praias, praias, duma ponta a outra, seus fedores marinhos."

João Filho, "Ao longo da linha amarela" (P55 Edições, 2009, ps. 18-19)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

"A partir daquele ponto pude entender o real sentido da expressão fim de mundo. Atravessar aquela fronteira entre o mundo real e aquela zona do crepúsculo era entrar em uma região apocalíptica onde as pessoas tinham sido substituídas por sombras. Tudo pelo caminho permanecia abandonado e quieto. A floresta invadia o asfalto e tornava-se cada vez mais difícil andar em alta velocidade. À beira da estrada, os vilarejos em ruínas, as choupanas sem teto serviam de viveiro para espécies vegetais. Dava dó ver casas com portas abertas e quintais vazios, barcos semi-submersos na água ferruginosa do lago ou enormes construções e complexos industriais largados ao acaso, espaços em branco na vida de alguém que passou muito tempo a construí-los." (ps. 195)

"Seguimos por um bosque entre os prédios – as árvores ali já tomavam quase tudo, como se a cidade já não fosse cidade, mas floresta – e, ainda assim, cidade. (...) Do terraço pudemos avistar a cidade-floresta estender-se frondosa. Era primavera e as árvores floriam entre os edifícios com seus genes defeituosos." (ps. 201-202)

"Nada era casa, pois nada era centro – mas sempre margem, da qual estávamos sempre partindo." (p. 207)

Márcio-André, Ensaios radioativos, Confraria do Vento, 2007 (Livro "Ensaios radioativos" em PDF)

sábado, 22 de dezembro de 2012

Em “Ocidente”, de Nilson Galvão, temos poesia praticada com afinco, cavada no cotidiano e cultivada em versos que acolhem fricções permanentes entre ideias, sensações e a voz que as escreve. São poemas sem divisões estróficas, como se, com essa opção, o poeta buscasse intensificar o efeito de suas associações bruscas de imagens, por meio de uma ligação icônica entre elas (procedimento já anunciado no texto de abertura, “Buñuel”, p. 3). Com uma espécie de gestualismo estilístico, que enfeixa fluência coloquial e leve experimentalismo, o poeta trafega entre episódios domésticos e referências cinematográficas e literárias (Cortázar; os personagens clássicos Bartleby, Quixote e Ulisses; Pessoa – que inspira “À beira do Tejo”, p. 12). Transparece ao longo da leitura uma concepção de poesia como evento que provoca um “furo no cotidiano” (p. 36), como em “Acidente doméstico” (p. 9) e “Milagres” (p. 38), dois dos melhores textos do pequeno volume em forma de envelope da coleção Cartas Bahianas. Alguns desses (e vários outros) textos de Galvão podem ser lidos no blog Blag.

Texto publicado em Verbo 21 (ano 13, nº 161, dez. 2012).


Três poemas do livro:



GUIA DE VIAGENS



A fé conduziu
Dante.
O ácido, Huxley.
Vai-se, de um jeito
ou de outro, ao inferno
e ao céu.

(“Ocidente”, Nilson Galvão, p. 13)



COMO QUEIRAM



Como queiram
os deuses, e como
não queiram.
A um só tempo,
o tempo todo.

(“Ocidente”, Nilson Galvão, p. 13)



CARO EINSTEIN



Deus não joga
dados, joga dardos,
tão profusos quanto
raios de sol rajadas
de vento. A ricochetear
nas paredes da casa:
dardos cujos alvos
mudam sem parar.

(“Ocidente”, Nilson Galvão, p. 47)